Uma Fantástica Jornada Submarina


Sem dúvida nenhuma, Júlio Verne é um ponto de referência se tratando de ficção científica. Suas histórias revolucionaram a literatura fantástica, imaginando não mais um passado fantasioso e cheio de magia, mas sim um futuro possível e imaginativo. Precursor do que nós conhecemos hoje como "Steampunk", uma ideia de "retro-futurismo" que mistura fantasia e ficção científica, o escritor francês é tratado até hoje como um visionário, levando uns a crer até mesmo que ele seria um "vidente".
Conhecido por suas histórias de viagens mirabolantes, diversos de conceitos que ele mesmo havia se inspirado em possibilidades do mundo real foram, posteriormente, criados e utilizados em massa, principalmente com intenções militares. Desde viagem à lua, até uma possível volta ao mundo em tempo recorde, conceitos que hoje estamos fortemente acostumados e que estão no dia a dia da sociedade globalizada dos dias atuais, foram previstos e, em grande parte, acertados pelo criativo escritor. 


É interessante, de fato, ressaltar a evolução que suas obras tiveram com o passar do tempo. É curioso pensar que a forma que os leitores contemporâneos ao autor tinham uma visão completamente diferente que as dos leitores dos dias atuais. Na época, de fato, essas construções espalhafatosas do autor eram tidas como "fantasia", ou mesmo tecnologias de um futuro muito distante, tal qual carros voadores. No entanto, nos dias de hoje, em que tais máquinas estão fortemente entranhadas no pensamento popular, mesmo pessoas que vivem em locais completamente distantes de qualquer tipo de oceano já ouviram falar em um submarino, ou mesmo em países sem qualquer desenvolvimento científico, foguetes espaciais são constantemente imaginados por crianças. Por isso essa ideia de "retro-futurismo", porque não são conceitos mirabolantes e irreais, mas sim, conceitos que conhecemos no nosso dia a dia, porém criados com tecnologias de épocas passadas, utilizando conceitos ciêntificos e o conhecimento da época, juntamente com a imaginação do autor.

Com todo esse conceito em mente, eu achei interessante começar minha jornada de leitura das obras do autor Júlio Verne com o título que mais me chamou atenção, nesse quesito: 20 mil Léguas Submarinas. É óbvio que, de fato, não foi o escritor que inventou o conceito de submarino, que já havia sido testado mais de duzentos anos antes da publicação da obra pelo inventor Cornelis Drebbel. Porém, é óbvio, que o tão famoso Nautilus, "personagem" principal da obra, não seria apenas um grande barril de couro movido a remo, como o do cientista alemão. Alguns outros equipamentos de locomoção por baixo d'água foram criados após a ideia de Drebbel, vale citar a inveção de David Bushnell e, inclusive, o também chamado Nautilus, possível inspiração de Verne, criado por Robert Fulton. Porém, só após o início do século XX que esse tipo de veículo foi fortemente utilizado, obviamente a serviços militares, principalmente durante as duas grandes guerras. Mesmo assim, foi apenas em 1958 que um submarino, já utilizando tecnologia nuclear, pode realizar a travessia sob o Polo Norte: o USS Nautilus. Enquanto isso, a invenção de Verne, liderada pelo Capitão Nemo -sim, o peixe do filme tem esse nome por conta do personagem do livro-, atravessou o ainda mais inóspito Polo Sul.

É óbvio que a obra é cheia de fantasia e conceitos irreais, porém se utiliza de diversas premissas científicas para justificar tantas façanhas. A energia elétrica é fornecida por minérios obtidos no próprio oceano, o revestimento de metal o torna praticamente invencível, entre tantas e tantas explicações.


A partir desse ponto haverão spoilers.
Estejam avisados.



Um Escolho Escorregadio

Tudo começa com o surgimento de uma estranha criatura que havia atacado diversas embarcações em situações completamente anormais. Essa criatura possuía um tamanho gigantesco, como uma baleia, mas uma velocidade descomunal e um tipo de "chifre" em sua cabeça, o que fizeram diversos cientistas apostarem na possibilidade da existência de um Narval gigante.

Isso gerou uma apreensão enorme no mundo todo, já que essa criatura estava atrapalhando rotas comerciais e gerando um certo pavor nas embarcações cargueiras.

No entanto, uma excursão foi montada, a bordo do navio Abraham Lincoln, capitaneada pelo Capitão Farragut, diversos marinheiros e cientistas, tais quais o professor francês Pierre Aronnax, seu criado Conseil, além do famoso arpoador canadense Ned Land se uniram com o objetivo de caçar essa criatura e, finalmente acabar com esse terror.

Ao encontrá-la, todos os planos vão por água abaixo. A criatura é muito mais rápida e resistente do que se imaginava. Todos os arpões dos poderoso Ned Land são inofensivos, e a batalha se mostra inútil.

Tal criatura vence e acaba destruindo parte do Abraham Lincoln. Aronnax, Conseil e Ned Land caem ao mar, mas acabam se salvando, por incrível que pareça, nas costas daquela criatura. Seu corpo é completamente revestido de metal, por isso os ataques eram em vão.

A essa altura do campeonato já deu pra entender que essa criatura era o famigerado Nautilus.

Após algum tempo, vários homens falando uma língua incompreensível pelos náufragos, surgem de uma escotilha no centro da embarcação e os carregam para dentro como prisioneiros. Diversas tentativas de comunicação em diversas línguas são feitas, mas tudo aquilo se mostrou inútil, visto a não resposta daqueles homens.

Logo, surge um homem distinto entre aqueles outros, que falava sua língua esquisita, mas também falava as línguas compreendidas em terra firme. Seu nome era Nemo, e ele era o capitão daquela embarcação. Ele se mostra um homem ríspido, porém, não os faz mal. Na verdade, como ele os havia salvo, ele permitiu que os três companheiros ficassem livres, porém apenas abordo da embarcação, já que eles jamais veriam a civilização terrestre novamente.


A partir desse ponto é que toda a jornada do livro começa. Todo o desenvolvimento de cada personagem  ocorre dentro do Nautilus -ou fora, seja em expedições submarinas ou em ilhas cheias de canibais.

O Capitão Nemo leva o grupo para uma jornada ao redor do mundo, viajando pelos oceanos Pacífico, Índico, Atlântico e pelo Mediterrâneo, pelo Mar Vermelho, pelos polos, e pelas costas de todos os continente.

As aventuras ocorrem de forma episódica. Elas têm início meio e fim e são interligadas cronologicamente e territorialmente, já que elas seguem uma sequência lógica de espaço e tempo de acontecimentos, e se valem principalmente dos capítulos curtíssimos do livro, o que o torna um tanto dinâmico. Por outro lado, pouquíssimas dessas aventuras são de fato interessantes. A grande parte não possui um problema ou um desafio a ser enfrentado. E, se por um lado os capítulos do livro são dinâmicos, essa falta de ação durante as aventuras tornam o livro extremamente arrastado.

Um outro fator agravante nisso tudo, são as dezenas e dezenas de páginas, durante todo o livro, em que o digníssimo Conseil, juntamente com seu patrão Aronnax, descrevem cada espécie de peixe, zoófito ou alga que eles encontram a cada novo local que eles chegam. São mais de 360 páginas onde eles viajam o mundo inteiro e que a cada novo local visitado, são de duas a três páginas cheias de nomes científicos de dezenas de criaturas que você provavelmente não conhece, e que poucas delas são realmente descritas fisicamente. O mais interessante disso tudo é que, por ser um livro de ficção científica, além de ter sido publicado no século XIX, ele definitivamente não tem obrigação de ser 100% acurado. Então, são cerca de 20 a 30 páginas de livro simplesmente desperdiçadas, sem a mínima influência no desenrolar da história. Isso torna o livro ainda mais entediante, mas, convenhamos, pela época em que foi escrito, isso seria, no mínimo, aceitável.


O professor, o criado e o arpoador

Em nenhum momento fica claro, exatamente, quais são as reais intenções do capitão Nemo. Ele é um homem soturno, porém vai se tornando ainda mais ríspido e inacessível com o desenrolar da trama. Apesar de sua decisão de manter os náufragos à bordo forçadamente, ele não os trata mal. Muito pelo contrário, ele torna a estadia bastante agradável, mostrando seus esconderijos submarinos, seus segredos ocultos sob as águas, levando-os a diversas aventuras que, de fato, eles aproveitaram bastante. Se dependesse apenas do professor Aronnax, que aproveitava cada momento daquela jornada científica, e de seu criado Conseil, que o seguiria a qualquer lugar que ele decidisse, aquela jornada seria extremamente prazerosa.

Porém, existe um sentimento irracional na cabeça do professor, quase como uma síndrome de Estocolmo, o mesmo cria uma forte admiração pelo capitão, muito pelas próprias aventuras que líder da embarcação os fornecia. Porém, o ponto de racionalidade do trio protagonista vem, justamente, do mais "irracional" dos três: Ned Land. Ele é o único que questiona sua posição naquela situação. Apenas ele entende aquilo como uma prisão, e é ele quem mantém o pensamento na necessidade deles fugirem dali o quanto antes. Todas as tentativas de fuga partem dele. Apenas Ned Land quem decide encarar o capitão, mas sabendo de seu temperamento, ele quem "vira a chave" o tempo todo do professor, que mantem uma relação mais amistosa com o capitão, para que o questionasse.

Conseil, por sua vez, é completamente ausente nas tomadas de decisão. Não possui opinião própria em boa parte do enredo, seguindo sempre o mesmo caminho que seu mestre. Em raros momentos, no entanto, ele serve como um "alívio" na tensão de Ned Land. Por mais que Ned Land seja o lado mais sensato do grupo, muito por conta de sua pro-atividade em deixar a embarcação, sua amizade com o pobre criado traz um pouco de sua racionalidade de volta à cabeça -vejam bem, em RAROS momentos, apenas. É óbvio que, de fato, não se deve esperar muito do personagem. Ele é muito mais uma base de sustentação para o desenvolvimento dos protagonistas, do que um protagonista em si.


O Capitão Nemo

Como já dito antes, o capitão Nemo é um homem controverso. Na realidade, pouco é dito sobre sua vida, seu passado, sua personalidade ou sobre seus motivos. Júlio Verne escreveu não só essa, mas outras aventuras do personagem, o que pode enriquecer bastante o personagem para leitores que desejam conhecer outras aventuras menos badaladas do autor francês. Por outro lado, porém, se você não deseja se aprofundar ainda mais na história do personagem, você irá se deparar com uma construção muito rasa, com apenas três ou quatro diálogos que dão a entender certos motivos do capitão, mas que não são conclusivos.

Esses momentos, no entanto, são o ponto alto da trama que, infelizmente, não os desenvolve como mereciam.

O capitão demonstra grandes -e nobres- motivos para suas decisões. Em certo ponto, há uma cena dos homens do Nautilus entregando ouro e metais preciosos a um mergulhador, morador de uma das ilhas no arquipélago Grego. Isso deixa os três protagonistas atônitos, pois não imaginava-se que o capitão havia cortado completamente seus laços com a terra.

De fato, o Capitão Nemo demonstra em diversos momentos o seu ódio contra a sociedade terrestre. Mas esse ódio é direcionado à sociedade como um todo, ao sistema implantado sobre as pessoas, à política geral do mundo, e não a todas as pessoas terrestres. Ele deixa bem claro sua posição abolicionista, tema bastante recorrente na época em que a obra foi publicada. Não só isso, ele dirige sua ira contra aqueles que promovem a desigualdade como um todo. Por isso essa ajuda às pessoas pobres na Grécia. Esse seu posicionamento é, de fato, acentuado pela perda de sua família. Não é dito, entretanto, como esse fato ocorreu, nem quem o causou, nem quando aconteceu. Sabe-se apenas que o Capitão Nemo busca vingança, não só pelo povo oprimido, mas por sua própria família.


Conclusão

Vinte Mil Léguas Submarinas é uma aventura interessante, se você tiver paciência de lê-lo. Existem poucos momentos, de fato, que geram certa tensão no leitor. Cito aqui, principalmente, as aventuras no Polo Sul e o ataque dos Polvos, que ocorrem já na última parte do livro -ou seja, demora bastante pra que algo realmente emocionante ocorra. O final, eu diria, foi bem abaixo do esperado. Além de não explicar a origem ou as intensões do capitão, ocorre um Deus Ex Machina, praticamente um milagre que salva a vida dos três personagens, sem nenhuma explicação.

Por fim, indico para aqueles leitores fãs de Júlio Verne, mas adianto, leia-o apenas se já se agradou das duas outras grandes viagens do autor: Volta ao Mundo em 80 Dias e Viagem ao Centro da Terra.

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